Alessandro Michele é um criador interessante. Deu à Gucci uma identidade poderosa, criada sim a partir dos arquivos da grife, mas inegavelmente moldada e consolidada a partir de sua visão da moda. Até agora ele circulava pelos castelos de sua imaginação, geralmente se mantendo nos cômodos mais frequentados: salões, jardins, quartos, entre tapetes, caixas de joias, baús de roupas e de memórias, obras de arte, heranças da vovó, essas coisas.
Mas agora o Gucci Squad chegou mais ousado. Entrou na biblioteca e de lá foi correndo para o porão onde, em ambiente controlado, entraram na vibe de estranhas experiências. Modelos segurando réplicas da própria cabeça, meninas de três olhos, e um pet dragão recém-nascido (obra do estúdio de efeitos especiais Makinarium) estão entre os resultados desse experimento, que, apesar dos elementos bizarros, tem uma base intelectual: o manifesto ciborgue, interessante e controverso texto da bióloga e filósofa Donna Haraway, de 1984.
TREND ALERT – Animal Print retorna as grandes tendências! Clique para conferir.
“O ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero”, explica Donna, em total sintonia com o que Alessandro tem feito na casa italiana. Desde sua primeira coleção, a ideia de uma roupa que desafiasse certas barreiras estava presente. E, com ela, a possibilidade de um outro mundo, de uma outra relação social. Não à toa, antes de chegar à reflexão dessa nova coleção, a Gucci foi ao espaço, abraçou ETs, talvez em busca de modelos mais livres vindos de outras civilizações. Uma viagem de descobrimento intergaláctica.
Ciborgue, no conceito de Donna, vale dizer, não é exatamente um Robocop. “Meu mito do ciborgue significa fronteiras transgredidas, potentes fusões e perigosas possibilidades”, continua a autora em outro trecho. O texto de Donna deve ser lido e entendido em seu contexto: fala de política, de feminismo, de socialismo. Questiona as identidades e defende rupturas nesse sentido, intuindo que elas nos aprisionam, de diferentes maneiras.
Se pergunta também sobre os limites entre humano e máquina, entre físico e não-físico, por exemplo. “A imagem do ciborgue pode sugerir uma forma de saída do labirinto dos dualismos por meio dos quais temos explicado nossos corpos e nossos instrumentos para nós mesmas. Trata-se do sonho não de uma linguagem comum, mas de uma poderosa e herética heteroglossia”, diz, se referindo às mulheres, especialmente as feministas, fazendo uma defesa muito interessante do poder emancipatório dos movimentos do feminismo negro.
Em seu release, a Gucci vai mais longe. Imagina corpos híbridos, convida para a brincadeira criaturas dignas dos livros e das sagas de fantasia do cinema. “Gucci Cyborg é pós-humana: tem olhos nas mãos, chifres de fauno, filhotes de dragão e cabeças duplicadas. É uma criatura biologicamente indefinida e culturalmente ciente. O último e extremo sinal de uma identidade miscigenada em constante transformação. O símbolo de uma possibilidade emancipatória por meio da qual podemos decidir nos tornar quem somos.”
Baile Vogue 2018 – As inspirações divinas e maravilhosas das fashionistas! Clique para saber mais.
Começando pelo cinema, que, até hoje, nos deu as imagens mais conhecidas de futuros e mundos nesses termos. De Blade Runner a filmes de terror B como The Astro Zombies, em que um cientista maluco tenta criar super humanos a partir de pedaços de pessoas. As balaclavas usadas pelos assassinos do filme aparecem em vários momentos. Em outro, em uma estampa, o título do filme Faster Pussycat Kill Kill, um cult do gênero exploitation estrelado pela icônica Tura Satana, que interpreta a líder de uma gangue de gogo girls, invertendo padrões de submissão, força e sensualidade.
A questão da identidade mutante e fragmentada está no remix presente em cada look, em cada peça, algo que Alessandro também tem feito desde o começo. Quem espera grandes diferenças de approach nessa coleção vai se decepcionar. O estilo antiguinho, as sobreposições, a exuberância dos acessórios, a avalanche de detalhes, o garimpo minucioso continuam fortes. Mais do que mostrar algo novo como proposta, o designer propõe uma nova perspectiva sobre o que já vem fazendo, ou seja, ao explicar certos fundamentos, acrescenta profundidade e nos faz olhar de outra forma para seu repertório.
É claro que existem sacadinhas, como as roupas divididas ao meio, estilo Médico e Monstro, Frankenstein hipster. O styling joga por cima das roupas as capas guarda-pó usadas para proteger as peças, o que pode ser visto de muitas maneiras, de uma brincadeira com a vibe empoeirada a uma provocação sobre muitos fashionistas se transformarem em híbridos de gente e label. Você mesmo deve conhecer algum.
Na moda, podemos brincar mais, podemos viajar com as asas de dragão que nós mesmos criamos. Na vida real a loucurinha de tudo-junto-agora pede mais reflexão porque, apesar de tudo, o corpo humano sangra e mexer com os limites do cérebro é assunto ao mesmo tempo violento e delicado. Sobre isso, a própria Donna Haraway dá a letra em uma das frases mais célebres de seu manifesto: “Este ensaio é um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção.”
Fonte: Elle Brasil.